quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Complexos auditivos.



Tem frases que passam de raspão na gente. 
Frases perdidas que cortam o ar vindo dos lugares mais inesperados, imprecisos. Ninguém está a salvo.
Quando me encontro alerta - atento andando pelas ruas -, ajo como um bom suicida, ajeito um pouco o corpo e me deixo acertar por esses tiros no ouvido.
Certa vez, correndo no parque, vi diante de mim um garoto com 11 anos e muitos passos curtos que o aproximavam à margem do rio. O parque é o Santana. O Rio é Capibaribe. O menino não tem nome. 
No passo apertado das suas pernas finas - soltas no calção de surfista -, ele se distancia da sua acompanhante, uma menina feia de cabelos pintados, desbocada antes mesmo de abrir a boca.
O menino disfarçava sua pressa, fazendo um joelho dançar com outro, olhando para um lado e assoviando para o contrario. Sua distração forçada, como quem nada quer, passaria desapercebida para olhos daltônicos.
Então veio o tiro.
Me atingiu, e também pegou no menino, que caiu calado no chão duro da vergonha.  
- Faz aí mesmo, doido, quem quer ver esse gôgo?
Que atiradora cruel.
Fuzilou dois ouvidos com uma frase.
Acelerei os passos e fugi com um gosto exótico na língua, mas que reconheci rapidamente. Coisas do paladar do idioma, coisas dos que fogem alvejados. Segui correndo, me sentindo mais vivo que no segundo anterior e com um sorriso escorrendo pelas tortuosidades da boca.
Meus pés faziam a contagem de metros e voltas para terminar meu exercício, e na minha cabeça ressoava o estampido daquela palavra curta, onomatopéica. A palavra de uma gargalhada. Esse português da sala de aula ao ar livre.
Outra vez, com outras armas, esse idioma me condenou a uma curiosidade que ficaria sempre no limbo. 
Andando pela feira de Casa Amarela, esperando a copia de uma chave que havia se apaixonado pela fechadura e decidira viver com ela, vi como um homem de pernas cabeludas caminhava e conversava com outro, se esquivando da minha presença mas deixando cair nesse desvio um Acho que essa foi a data mais triste da minha vida.
Minha curiosidade sentiu pena por ele, sem atinar que eu também tenho um calendário para isso. Me fez olhá-los, o homem e meu calendário, pensar, me perguntar, perguntar a ele, perguntar a vocês. Qual o dia mais triste da sua vida? Qual o mais feliz?   
O que aconteceu na vida daquele cara para ele pensar isso? Parece que quando a gente tem tempo de escutar os outros, de escutar seu idioma, dentro da gente surge outro ser humano que diz Ei, vem cá. Me conta essa estória, fala de você.
Quando alguma frase te mata, se aloja na cabeça, se estraçalha em sentimento,  o dano é irreversível.  
Lembro de uma mamãe suburbana que engoliu uma pílula de verdade poética e dentro dela morreu uma mulher cheia de neuras.
A filha havia escapulido e batera na vitrine da loja de disfarces, apontando um conjunto como seu futuro presente de Natal.
A mãe negou. Vai ganhar roupa.
Mas, mãe, toda roupa é fantasia.
 
Depois desse dia passei a ver as pessoas de roupa a fantasia.
E você está vestido de que? De personalidade, senhor, e você? Do que eu quero ser hoje. Amanha, eu mudo. Venho de outra coisa. 
A frase da pirralhinha mudou um pouquinho do meu mundo, que passou a entender nas fantasias dos outros suas aspirações e realidades, o espelho para fora. Me fez ver as vaidades com mais beleza, as mulheres com mais sonhos, os homens mais lúdicos.  

Já em uma das quatro terças-feiras de março, um cobrador de ônibus - que cobria a folga de um companheiro - fez uma pose atrasada para tapar o ouvido, assustado mais pelo volume do que escutara do que pela declaração em si.
Priscila, seja feliz. Foi o que um rapaz de barbicha jogou com força em cima da moça que tentava abrir a porta do carro saindo de um estacionamento qualquer. A cabeça do rapaz desapareceu janela adentro do ônibus, escondendo a boca que atirara a primeira palavra e saindo do quadro após o ponto final da frase. Priscila fez uma pose atrasada e se pôs a procurar aquelas palavras. O coletivo voltava a andar. O rapaz, um bom sujeito, é devolvido a janela e assina sua frase, sendo reconhecido pelos olhos fraternais de Priscila. Da calçada, ouviu ele começar e terminar de escrever É seu inconsciente, enquanto o ônibus seguia em frente, apressado, levando um momento feliz do dia de Priscila e do meu.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Cada morto no seu galho.




Ninguém iria suspeitar dele. Jamais passaria pela cabeça nem do melhor detetive que aquele ser estapafúrdio seria responsável pelo desassossego que tomou conta do bairro nos últimos meses. Também pudera. Culpar um botânico por crimes tão hediondos seria quase uma irresponsabilidade.
Com a coluna saindo pelas costas, como gostava de dizer Dona Iraci, dona da casa cheia de trepadeiras que ficava na esquina, o meliante passava horas e horas no jardim da praça. Inofensivo, conversando com as plantas. Todos da vizinhança se apiedavam do pobre coitado. Por outro lado, não tem quem não tivesse uma estória engraçada de algum vizinho recém-chegado que se assustara ao ver de repente aquela corcundinha por trás dos arbustos.
Hoje ninguém acha mais graça. Começando por Seu Donato, um vovô que caiu na putaria somente depois que sua amada Carminha fora comer capim pela raiz. O velho desandou, e desandou bonito, mas nem por um momento imaginou que por conta do corcundinha, Carminha tivesse que pôr mesa para dois.
Num domingo pela manhã, voltando da cachaça absurda que vinha tomando desde sexta, Seu Donato veio se arrastando pelo meio-fio. Parou no portão de casa, levantou um pouco as calças, coçou a orelha e com os olhos fechados e a voz esganiçada dizia amorosamente para a garrafa de cana... tive sim... outro grande amor antes do teu, tive sim... e nisso caia uma lágrima de saudade de Carminha.
Observando a cena, tão patética e tão poética, estava Mazela, a famosa e amarelenta vira-lata, querida por todos do bairro. Segundo Donato, e ele jurava pela alma da falecida, nesse dia Mazela não latiu, falou. A cachorra veio cruzando a rua, olhando fixamente o viúvo, e quando este se agachou pra alisar seu focinho, levou uma lambida na cara. Seu Donato disse o quehhh é ishhso, Maêzela? E com a mão na cara ainda tentando se limpar, escutou de volta com um sotaque bem arrastado: ô veio corno! 

As muitas e muitas bebedeiras de Seu Donato não são importantes para a elucidação do mistério, mas sem dúvida, sua morte sim. E o resumo dela é bem simples. Um dia, tomando banho, Seu Donato notou algo estranho. Sentiu um caroço debaixo do braço. Algo diferente. Não era um caroço qualquer. Era um caroço de feijão. Aquilo passou do ponto, apodreceu, e ele continuou achando que era uma sovaqueira. Passou dois dias largando Leite de Rosas nas axilas e ainda assim morreu fedendo.

Feijão mulatinho é foda, acaba com qualquer um.

...............

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Irreconhecível


Manuela chegou no trabalho aturdida. Os companheiros, e eu me incluo, logo notaram que algo estava errado. Manuela não suava frio, não estava mais branca do que costumava estar, nem mais calada do que o habitual. Mas era impossível não notar essa cara de quem viu fantasma.
Ela demorou um bocado para tirar a bolsa, o casaco, e as palavras da boca para explicar o que aconteceu. Foi pegar uma água, sentou na mesa de trabalho, levantou e abaixou a cabeça umas dez vezes, olhando triste para o chão, para o vazio, para o infinito. Quando olhou de novo para gente, não sabia como começar a frase.
Paulo, então, procurou sua voz mais paternal para não deixar transparecer sua ansiedade. Obviamente, em vão. A ansiedade também era nossa e todos a percebemos quando ele soltou: - O que foi menina? Que foi que aconteceu?
A resposta saiu de uma vez só, mas sem muita força. O desconsolo de Manuela tomou conta de suas palavras.
- Acabei de cruzar com meu ex na rua.
Uma onomatopéia em coro, ainda que baixinho, se juntou ao grupo que estava ao redor de Manuela. Parecia que todos conheciam aquela estória sem nunca tê-la escutado, mas não.
Ele estava em uma esquina, sentado no chão, pedindo dinheiro – ela disse a continuação.
Agora sim essa estória interessava. Levou uns bons cinco segundos até que todos terminassem a pesquisa mental. Não, eles não conheciam ninguém que tivesse namorado com um mendigo.
Apesar de curiosos, não quisemos perguntar muito mais. Não assim, na frente de todo mundo.
Possivelmente, também não adiantasse. Manuela continuou perplexa e nem conseguiu trabalhar. Até pensou em voltar na esquina do seu ex, só para ter certeza que era ele.
Quando chegou em casa, fez uma pergunta estranha para o marido.
O que você faria se eu saísse da sua vida?
Doaria meu coração à ciência, respondeu ele, rápido, com seu típico sorriso apaixonado.
Ela o olhou e retribuiu o sorriso com gosto, mas na hora de dormir pensou que estava com a pessoa errada.
Sem ele, achava que viraria mendigo.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O homem amargo.



Alberto cheirava mal. Cheirava mal pra cacete. Tinha virado vagabundo fazia pouco tempo. Perdeu o trabalho, a mulher lhe deu um chutão, o de sempre. Esse velho filme que se repete nesse cinema da vida. E ele virou protagonista sem muita explicação. No trabalho já não estava rendendo muito, já nada lhe importava, já tinha perdido o tesão no que fazia. Seguia pelos caminhos da burocracia pura e dura. Assinar aqui, enviar aquele email ali, levar com a barriga. E olha que Alberto nem comia tanto assim, vai ver que por isso não conseguiu levar com a barriga por mais tempo. Chegando em casa, uma vez demitido, foi aquele chororô, aquele desespero. Ângela, sua mulher, era a que chorava. Porque ele continuava impassível, nem aí. O trabalho realmente era uma merda. Ele decidiu que queria mudar de profissão, mudar de vida, etc. Esses papos de quem foi chutado.

Agora, já nao tinha motivo para acordar cedo, nem pegar aquele trânsito matutino, nem escutar as piadinhas dos companheiros de trabalho, nem porra nenhuma mais. Seu celular/despertador havia sido demitido junto com ele. E ele ia aproveitar. Passaria as manhãs dançando sonolento com seus lençóis, esse tipo de coisa que todo mortal decente gostaria de fazer mas nunca teve cunhões. Ou melhor, que preferia o dinheiro para poder comer que os culhões para coçar.

Passado o primeiro mês, a monotonia chegou. Trouxe malas e tudo. Talvez fosse uma segunda-feira quando chegou. Ou uma quarta, sei lá. Os dias foram todos iguais depois que ela chegou. Alberto ligava a televisão e ali ficava. Entrava na internet, tocava uma punheta e dormia. Botava os pés na rua de vez em quando. Pra comprar cigarro com o dinheiro que Ângela lhe deixava. Por sinal, o que anda fazendo Ângela voltando tão tarde do trabalho? Vai ver que anda fuxicando de Alberto para as amigas do trabalho. Falando do muito vagabundo que ele anda. E quem será que a traz de carro quando chove? Ela diz que pega carona porque anda tudo alagado. Claro. Nunca admitiria que conseguiu um amante para dar-lhe tudo que um vagabundo não pode dar. Mas Alberto já não se importava com isso. Nem com a chuva, nem com o carro, nem com a traição. Ou ao menos era o que parecia. Alberto estava puto com ele mesmo. Queria voltar a descobrir o que é que lhe dava tesão na vida. E sabia muito bem que não era Ângela.

Ângela descobriu tudo isso antes dele, quando começou a sair com Federic, um canadense com carro que trabalhava na mesma empresa que ela. No terceiro mês de vagabundagem de Alberto, Ângela não aguentou mais. A pobre anjinha, como Alberto a chamava, recolheu as asas, soltou o rabo preso e foi embora. Saiu de casa. Não houve muita discussão. Uma noite chegou, falou o que tinha que falar e deixou Alberto com suas coisas.

Ela cruzou a porta sem lágrimas nos olhos. Simplesmente deixava um vagabundo, nada mais.
Ele se resignou e decidiu que ia mudar de mulher, de vida, etc. Esses papos de quem foi chutado.

Na manhã seguinte, Alberto abriu a geladeira e não tinha nada mais do que as coisas que Ângela deixara dentro. Um requeijão, uns tomates e um pouco de suco de abacaxi. Ficou ali uns 5 minutos. Olhando, olhando, esperando que aparecesse na sua frente o que ele desejava. Um verdadeiro filósofo de geladeira. Coisa de gordo, né. Pois é, mas Alberto não era, nem seria num futuro próximo estando desempregado como estava. Aquele friozinho da geladeira aberta parece que invadia seu corpo e lhe gelava os sentimentos. Por que as pessoas também não saem da fábrica com data de validade na testa?

Ele fechou a geladeira sem muita força. Sem raiva. Preferiu ficar sem comer. Foi pra sala, sentou no sofá verde e botou as mãos na cabeça. Passou a mão na testa, esfregou os olhos e com os dedos em forma de pinça, cutucou o alto do nariz. Olhou o cinzeiro. Só cinzas. Já não sobravam goias.

Quatro dias depois, Alberto voltou ao sofá. Não escovara os dentes. Nos últimos quatro dias não escovara os dentes. Não saiu de casa, não havia dinheiro para comprar cigarros. Andava irritado. Mas andava irritado dentro de casa. Era tão patético que evitava se olhar no espelho. Só de cueca, ficava calado ou resmungando, como um boneco em trapos indeciso entre o on e o off.

Com a língua esfregava a parte de trás dos dentes, sentindo um certo lodo se apoderando da boca. Estava sujo. A cueca suja. A mente suja. No sovaco linhas pretas desenhavam seu desdém, sua imundice. Lembrou-se de quando tinha trabalho e passava pelos pedintes na rua. Agora se identificava com eles, sentia o mesmo ar podre que eles respiravam e que pela força do abandono descobriu que vinha deles mesmos. Esse cheiro de morte em vida, de nenhum banho, esse suor fedorento que de tanto escorrer entre suas pernas, se encrustou. Para disfarçar (para quem?) o sovaco asqueroso, colocava desodorante por cima e só fazia piorar as coisas. O cheiro químico se misturava com o mau cheiro natural e o resultado era o que se esperava: desesperador, repelente. Deixou de se limpar até quando gozava. Guardava dentro da cueca amarelada e esperava que a cola não grudasse muito. Já passava pela sua cabeça, que agora coçava mais que nunca, repetir o processo quando cagasse. Alberto era um ser imundo. Riu sozinho quando pensou que patentearia a palavra antes de Steve Jobs.

Nisso o celular tocou. O despertador voltou a ter emprego. Era Carlos:

- Hoje, às 4.

Alberto se levantou. Aquela ligação caiu do céu. Finalmente entrou no banheiro, tirou a cueca e tirou na roupa suja. Girou a maçaneta do chuveiro. Aquela água caiu do céu.

Seria novamente um homem. Limpo. Iria mudar de vida (falou baixinho), mudar de vida e etc.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Pau de dar em doido. (Crônica 1)


Só deu pra ver a bunda do ônibus. Era suficiente. Carlota quando o viu, arregalou os olhos e saiu desembestada. O uniforme do Nossa Senhora de Lourdes não deixava lugar a dúvidas. Era colegial. E como tal, o sutiã branco de renda dava mais volume e chamava mais atenção do que aquilo que em teoria deveria esconder. O aparelho nos dentes, o cabelo pendurado num coque malabarístico e o correr desajeitado denunciavam a idade da moça. Moça de verdade naquela época.

Pelas linhas vermelhas e cinzas da traseira do ônibus branco e empoeirado, era fácil reconhecer o Vasco da Gama – Boa Viagem que havia saido da rua canhota daquela encruzilhada 200 metros mais adiante do colégio. Só ele passava por ali.

Entre onde estava Carlota e a parada do ônibus, ela teria ainda uns bons 300 metros para percorrer. Era uma calçada comum embora semeada de postes, tendo por um lado a pista e do outro as grades da Tamarineira, um hospital psiquiátrico. Aquelas grades separavam os doidos que estavam dentro dos doidos que estavam fora. E eles ficavam por ali mesmo na hora do recreio deles. Era tudo manso, não tinha bronca nem medo. Se estavam por ali perambulando é porque algum doutor tinha permitido. Mas isso era a última coisa que passava na cabeça de Carlota. Ela estava acostumada com os doidos que vinham pedir cigarro na parada de ônibus igualmente encostada na grade do manicômio. Depois de um tempinho de nada, a gente se acostuma e nem liga mais pra eles. Dá uma de doido.

Pois bem, no meio da carrera, Carlota ainda teve tempo para besteiras femeninas e lembrou-se de botar os livros na frente do busto para evitar olhares lascivos. O coque começava a se desfazer, dando-lhe um ar de moleca. Lá vinha ela. Desengonçada como as virgens, cômica como um slowmotion e desesperada como fugindo do inferno. E Recife era um inferno. O calor daquele meio-dia era igual ao calor de todo meio-dia em Recife. Calor pra caralho. Desses de encher o suvaco de lágrimas em apenas 5 minutos.

Eu já estava na parada esperando meu Casa Amarela - Padre Lemos de sempre e por ajudar a pobre moça gostosinha, estendi a mão. Com certeza esperava um sorriso agradecido em um lapso de flerte. Se fosse assim, ela ia acabar nessa mesma mão nada mais chegar em casa. Porém não mudemos de assunto.

O motorista parou uns metros mais na frente. Eu ainda fingi a intenção de subir no ônibus para que a desconhecida Carlota ganhasse tempo. Ela acelerou a corrida. Estava quase lá. Se o “tio” fosse mais gente boa tinha esperado. Mas não.

Ele deu uma olhada no retrovisor retângular, viu que eu não ia subir mesmo, olhou o sinal se abrindo e mandou tudo pra merda. Carlotinha que se foda. E não é que por me dar uma resposta, ele me olhou pelo espelho, deu umas voltinhas com o dedo indicador e encerrou o ato de condutor de orquestra/ônibus colocando o polegar na horizontal e apontando pra trás. Sim, eu já sabia que viria outro, é claro. Por isso que as empresas têm frotas. Mas pobre Carlota, né. Passaria 45 minutos esperando o próximo, fácil,fácil. Antes que eu terminasse o pensamento, o motorista tinha dado no pé e o pé no acelerador. Carlota chegou ainda a respirar a fumaça do cano de escape.

Batalha perdida, ela começou a se recompor ligeiramente. Pôs o cabelo atrás da orelha e me olhou com cara chateada, mas não por minha culpa, isso eu sabia. Disse com a voz da vergonha, valeu.

Ela ajeitou-se um pouco mais. Desenrugou a camisa, alineou os cadernos, deu uma passada na parte de trás do jeans pra saber se tudo estava no lugar, que não lhe havia caido nada no caminho feito às pressas. Vira e mexe, eu a olhava e tirava o olhar para não dar pinta de voyeur.

Ela pôs os livros no meio das pernas e apertou as coxas contra eles, tirou o pauzinho da cabeça e erguendo os braços voltou a ser mulher de coque.

O doido que tinha visto toda a odisséia de Carlota se aproximou de mim.
Veio devagarinho.
Colocou uma mão na grade, foi chegando mais perto, mais perto e parou. Eu que já tinha notado sua presença fiquei esperando. Ele mexendo a sobrancelha, chamou minha atenção balançando também a cabeça, apontando para Carlota. Então olhou pra mim e piscou, querendo contar um segredo de amigos e confidentes:

- Peitinho massa, ein.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Quando ouvires um lamento, crescer desolador na voz do vento: sou eu em solidão pensando em ti, chorando todo o tempo que perdi.


Primeiro eu achei que fossem meus óculos. Estavam capengando, caindo para um lado, para ser exato o lado direito. Meu lado direito. Depois fui percebendo. Não eram os óculos. Era eu mesmo. Minha cabeça estava se inclinando e eu não percebi. Ao me dar conta me imaginei dez anos no futuro, completamente curvo, corcunda. Mas de momento, era uma inclinação que eu havia percebido pelos óculos.

Mas logo me olhei no espelho e vi que uma orelha era mais baixa que a outra, e meus olhos também, e essa sobrancelha que não sabe o que quer na minha cara. Esse nariz...ih..putz, não tinha percebido quão grandes eram esses buracos. Caralho, que cara feia da porra.
Podiam ter caprichado um pouquinho mais, né, Pai-Mãe-DNA-Deus-Xangô - nessa ordem - não custava nada.

Mas é assim mesmo. Não posso me queixar agora, eu também não ajudei muito. Essas manchas no rosto são minhas. Meu pai bem que avisou, menino, sai do sol. E eu nem aí. Mas ele me falou. E meu irmão, então? Agora você não está nem aí para o cabelo, mas deixa chegar na adolescência. Pois é, vocês estavam certos.

Continuo nem aí, quem quiser vai ter que levar o pacote por esse preço. Não aceitamos isso de penchichar ainda que fique à vontade para devolver o produto. Quem não vai querer um corcundinha cheio de gordura e bom humor? Ah, e careca. Um charme só.

Não tenho mais tempo para pensar nisso. Ainda que não esteja fazendo nada melhor que me olhar no espelho. Será que no futuro a coisa melhora? Desconfio que não. A tendência é piorar sempre e isso já se nota. Mas quem se importa? Se eu tiver dinheiro, se eu tiver trabalho, se eu aprender a dirigir, se comprar minha casa, se escutar boa música, se gostar de trepar, se tudo isso acontecer, acho que eu caso. Algum dia. Mas acho que só uma vez, e digo achando errado. Nem que seja pela herança, nem que seja por ter um defunto que chorar. Nem que eu me mude pro Rio, nem que eu viva em Mangueira, onde os poetas ganham lágrimas de olhos anônimos, somente por ser poeta morto, só por ter escrito um sambinha (que também está na minha lista), só por ser eu mesmo.

E será que eu aguento ser eu mesmo? Vou te contar. A coisa não está fácil. E digo mais, a coisa não está nada fácil. São esses anos passando de um lado para outro, e que vão trombando comigo e deixando meus óculos meio bambo, dançando ante meus olhos tronchos. Ô vidinha para me queixar. Tem gente pior, tem gente na pior. Tenho certeza. Pelo menos aprendi um par de coisas. Gosto de ler, de ver notícia, de ver filme, de sacanagem. Aprendi muita coisa assim, joga para um lado, abre um pouquinho aqui, põe a lingua alí, e de vez em quando sai um poema sem vergonha, desses que a vergonha se escapa por uns momentos, com vergonha do que vai ver. Esse corpinho sem graça, esse corpão gordo, vai se balançando e escorrendo suor para todo lado. Um garotinho de Ipanema.
Sem música, sem a paixão dos anos 50, sem sonhos e anos dourados, apenas esperando que meu dedo toque nesses óculos e ajeite minha visão da vida, a visão de mim mesmo.

Assinado: Vinicius.

Obs. O irmão de Vinicius era mais novo que ele.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O chute (qual a música?)


De longe, dobrando a esquina era apenas uma sombra. Uma sombra que foi crescendo em minha direção e eu sem nada perceber. Apenas vinha, em silêncio, deixando o barulho dos demais como trilha sonora do que viria a seguir. E não pense que estava escuro e ninguém pudesse ver. Não, nada disso. Ainda era cedo, não era noite todavia. Eu ia andando pela rua, atento para não perder os novos detalhes que não estavam na semana anterior, essa vida dinâmica que as cidades têm; bobo, pensando outras coisas que só os bobos pensam.

De repente, quando já era tarde, e aquilo estava tão perto de mim que se assemelhava a um gigante, percebi que as ilusões de ótica são mais bobagem do que as bobagens que eu vinha pensando. Sem esperar recebi o golpe do meu agressor. Não lhe vi a cara, não vi se tinha ódio nos olhos, mas senti uma mágoa, uma mágoa comigo. Não balbuciou palavras, nem me insultou, queria parecer respeitável, ainda que sua atitude fosse a mais cruel contradição. Apenas me batia e isso lhe bastava. Eu, prostrado, ali fiquei, recebendo seus chutes e, em algum momento, acho que senti sua baba de raiva ou cansaço cair em mim.
Não sei ao certo e acredito que ninguém nunca saberá, mas me deu a impressão de que não havia assombro nas pessoas ao redor. Era apenas alguém batendo e outro apanhando, e isso já não surpreende ninguém.

Senti o sangue que molhava minha boca, que escorria do meu nariz. Tonto, senti no ouvido um jorro de horas e horas de gritos. Mas não ouvi palavras. Não houve palavras. Mas quem sabe eu mesmo estivesse berrando pra mim, não sinto nada, já não sinto. Um berro que fere, vicia e cura melhor que qualquer morfina.
No chão, tentei abrir os olhos, e por mais força que empenhasse em ver sua sombra em fuga, nada via, só havia dor, mais dor. Ao fechar os olhos, apertando-os, as lágrimas não desciam e, além do mais, eu, homem, não deveria chorar por um chute qualquer. Mas queria chorar por não agradecê-lo com um adeus como se deve, olhando na minha cara o estrago que havia feito.

Quando por fim meus olhos encontraram um foco onde centrar a mirada, vi meu agressor partindo, me deixando para trás, longe o suficiente para não escutar o adeus que não lhe dei. Discerni seu perfil entre a massa borrada que se tornara as coisas da cidade, suas lojas, placas, calçadas, prédios, céu. Ele saía apressado olhando o relógio, como se tivesse um compromisso mais importante que me chutar. Talvez fosse hora de voltar pra casa, de dormir, deitar cedo para acordar mais cedo. Não sei o rumo que iria tomar, sei que ia embora e nada mais.

Ainda parou a poucos metros, na frente de um poste, desses pequenos, perto do meio-fio, e passou a mão no sapato para tirar o meu sangue, como se fosse o pó daquele par que já levava muito tempo guardado. Talvez os tivesse colocado de manhãzinha com essa intenção, chutar alguém na rua. Quem sabe isso possa se incluir como um ocasião especial. Aquele chute me triturou por completo, que ato mais mesquinho. Mas por algum motivo estranho, me senti merecedor.

Naquele momento, meu coração deixou de pertencer àquela cidade, já não existia nada que me prendesse a ela. Herdeiro do seu cinismo, deixei só o meu orgulho no chão como lembrança.

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