quinta-feira, 24 de março de 2011

O chute (qual a música?)


De longe, dobrando a esquina era apenas uma sombra. Uma sombra que foi crescendo em minha direção e eu sem nada perceber. Apenas vinha, em silêncio, deixando o barulho dos demais como trilha sonora do que viria a seguir. E não pense que estava escuro e ninguém pudesse ver. Não, nada disso. Ainda era cedo, não era noite todavia. Eu ia andando pela rua, atento para não perder os novos detalhes que não estavam na semana anterior, essa vida dinâmica que as cidades têm; bobo, pensando outras coisas que só os bobos pensam.

De repente, quando já era tarde, e aquilo estava tão perto de mim que se assemelhava a um gigante, percebi que as ilusões de ótica são mais bobagem do que as bobagens que eu vinha pensando. Sem esperar recebi o golpe do meu agressor. Não lhe vi a cara, não vi se tinha ódio nos olhos, mas senti uma mágoa, uma mágoa comigo. Não balbuciou palavras, nem me insultou, queria parecer respeitável, ainda que sua atitude fosse a mais cruel contradição. Apenas me batia e isso lhe bastava. Eu, prostrado, ali fiquei, recebendo seus chutes e, em algum momento, acho que senti sua baba de raiva ou cansaço cair em mim.
Não sei ao certo e acredito que ninguém nunca saberá, mas me deu a impressão de que não havia assombro nas pessoas ao redor. Era apenas alguém batendo e outro apanhando, e isso já não surpreende ninguém.

Senti o sangue que molhava minha boca, que escorria do meu nariz. Tonto, senti no ouvido um jorro de horas e horas de gritos. Mas não ouvi palavras. Não houve palavras. Mas quem sabe eu mesmo estivesse berrando pra mim, não sinto nada, já não sinto. Um berro que fere, vicia e cura melhor que qualquer morfina.
No chão, tentei abrir os olhos, e por mais força que empenhasse em ver sua sombra em fuga, nada via, só havia dor, mais dor. Ao fechar os olhos, apertando-os, as lágrimas não desciam e, além do mais, eu, homem, não deveria chorar por um chute qualquer. Mas queria chorar por não agradecê-lo com um adeus como se deve, olhando na minha cara o estrago que havia feito.

Quando por fim meus olhos encontraram um foco onde centrar a mirada, vi meu agressor partindo, me deixando para trás, longe o suficiente para não escutar o adeus que não lhe dei. Discerni seu perfil entre a massa borrada que se tornara as coisas da cidade, suas lojas, placas, calçadas, prédios, céu. Ele saía apressado olhando o relógio, como se tivesse um compromisso mais importante que me chutar. Talvez fosse hora de voltar pra casa, de dormir, deitar cedo para acordar mais cedo. Não sei o rumo que iria tomar, sei que ia embora e nada mais.

Ainda parou a poucos metros, na frente de um poste, desses pequenos, perto do meio-fio, e passou a mão no sapato para tirar o meu sangue, como se fosse o pó daquele par que já levava muito tempo guardado. Talvez os tivesse colocado de manhãzinha com essa intenção, chutar alguém na rua. Quem sabe isso possa se incluir como um ocasião especial. Aquele chute me triturou por completo, que ato mais mesquinho. Mas por algum motivo estranho, me senti merecedor.

Naquele momento, meu coração deixou de pertencer àquela cidade, já não existia nada que me prendesse a ela. Herdeiro do seu cinismo, deixei só o meu orgulho no chão como lembrança.

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