quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Complexos auditivos.



Tem frases que passam de raspão na gente. 
Frases perdidas que cortam o ar vindo dos lugares mais inesperados, imprecisos. Ninguém está a salvo.
Quando me encontro alerta - atento andando pelas ruas -, ajo como um bom suicida, ajeito um pouco o corpo e me deixo acertar por esses tiros no ouvido.
Certa vez, correndo no parque, vi diante de mim um garoto com 11 anos e muitos passos curtos que o aproximavam à margem do rio. O parque é o Santana. O Rio é Capibaribe. O menino não tem nome. 
No passo apertado das suas pernas finas - soltas no calção de surfista -, ele se distancia da sua acompanhante, uma menina feia de cabelos pintados, desbocada antes mesmo de abrir a boca.
O menino disfarçava sua pressa, fazendo um joelho dançar com outro, olhando para um lado e assoviando para o contrario. Sua distração forçada, como quem nada quer, passaria desapercebida para olhos daltônicos.
Então veio o tiro.
Me atingiu, e também pegou no menino, que caiu calado no chão duro da vergonha.  
- Faz aí mesmo, doido, quem quer ver esse gôgo?
Que atiradora cruel.
Fuzilou dois ouvidos com uma frase.
Acelerei os passos e fugi com um gosto exótico na língua, mas que reconheci rapidamente. Coisas do paladar do idioma, coisas dos que fogem alvejados. Segui correndo, me sentindo mais vivo que no segundo anterior e com um sorriso escorrendo pelas tortuosidades da boca.
Meus pés faziam a contagem de metros e voltas para terminar meu exercício, e na minha cabeça ressoava o estampido daquela palavra curta, onomatopéica. A palavra de uma gargalhada. Esse português da sala de aula ao ar livre.
Outra vez, com outras armas, esse idioma me condenou a uma curiosidade que ficaria sempre no limbo. 
Andando pela feira de Casa Amarela, esperando a copia de uma chave que havia se apaixonado pela fechadura e decidira viver com ela, vi como um homem de pernas cabeludas caminhava e conversava com outro, se esquivando da minha presença mas deixando cair nesse desvio um Acho que essa foi a data mais triste da minha vida.
Minha curiosidade sentiu pena por ele, sem atinar que eu também tenho um calendário para isso. Me fez olhá-los, o homem e meu calendário, pensar, me perguntar, perguntar a ele, perguntar a vocês. Qual o dia mais triste da sua vida? Qual o mais feliz?   
O que aconteceu na vida daquele cara para ele pensar isso? Parece que quando a gente tem tempo de escutar os outros, de escutar seu idioma, dentro da gente surge outro ser humano que diz Ei, vem cá. Me conta essa estória, fala de você.
Quando alguma frase te mata, se aloja na cabeça, se estraçalha em sentimento,  o dano é irreversível.  
Lembro de uma mamãe suburbana que engoliu uma pílula de verdade poética e dentro dela morreu uma mulher cheia de neuras.
A filha havia escapulido e batera na vitrine da loja de disfarces, apontando um conjunto como seu futuro presente de Natal.
A mãe negou. Vai ganhar roupa.
Mas, mãe, toda roupa é fantasia.
 
Depois desse dia passei a ver as pessoas de roupa a fantasia.
E você está vestido de que? De personalidade, senhor, e você? Do que eu quero ser hoje. Amanha, eu mudo. Venho de outra coisa. 
A frase da pirralhinha mudou um pouquinho do meu mundo, que passou a entender nas fantasias dos outros suas aspirações e realidades, o espelho para fora. Me fez ver as vaidades com mais beleza, as mulheres com mais sonhos, os homens mais lúdicos.  

Já em uma das quatro terças-feiras de março, um cobrador de ônibus - que cobria a folga de um companheiro - fez uma pose atrasada para tapar o ouvido, assustado mais pelo volume do que escutara do que pela declaração em si.
Priscila, seja feliz. Foi o que um rapaz de barbicha jogou com força em cima da moça que tentava abrir a porta do carro saindo de um estacionamento qualquer. A cabeça do rapaz desapareceu janela adentro do ônibus, escondendo a boca que atirara a primeira palavra e saindo do quadro após o ponto final da frase. Priscila fez uma pose atrasada e se pôs a procurar aquelas palavras. O coletivo voltava a andar. O rapaz, um bom sujeito, é devolvido a janela e assina sua frase, sendo reconhecido pelos olhos fraternais de Priscila. Da calçada, ouviu ele começar e terminar de escrever É seu inconsciente, enquanto o ônibus seguia em frente, apressado, levando um momento feliz do dia de Priscila e do meu.

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